O traço insurgente do quadrinho marginal brasileiro
Em uma época em que os quadrinhos brasileiros eram dominados por super-heróis importados e personagens televisivos, Henry Jaepelt escolheu trilhar um caminho alternativo e, por isso mesmo, essencial. Natural de Timbó, em Santa Catarina, Jaepelt começou a produzir HQs no circuito underground dos anos 1980, movido por inquietação estética e uma necessidade visceral de expressão.
Seus fanzines circulavam como relíquias de contrabando entre leitores e artistas, com traços carregados, temas provocativos e uma pegada gráfica que desafiava as convenções do mercado editorial. Ele não buscava concessões: suas histórias exploravam o grotesco, o existencial e o político, sempre com uma assinatura inconfundível.
Em 2013, parte desse legado foi resgatado na coletânea Maldito Seja Henry Jaepelt, publicada pela Ugra Press. A obra reúne 26 HQs curtas e uma longa entrevista, revelando não apenas o artista gráfico, mas também o pensador e agitador cultural que ele é. Seu nome tornou-se sinônimo de resistência criativa dentro do quadrinho nacional, influenciando uma geração de autores independentes.
Hoje, Jaepelt continua produzindo e compartilhando seu trabalho nas redes sociais, com a mesma chama criativa dos primeiros tempos. Seu universo gráfico, povoado por figuras inquietantes e gatos observadores, permanece como uma ilha autônoma dentro do oceano do mainstream.
Nesta edição, temos a honra de apresentar uma entrevista exclusiva com Henry Jaepelt, um mergulho na mente de um dos nomes mais autênticos e malditos da nossa história em quadrinhos.
Uma Pausa para o Café: Henry, vamos começar do início. Você nasceu em Timbó, SC, e começou a produzir quadrinhos em uma época em que o termo “underground” ainda era sussurrado. O que te levou a mergulhar nesse mundo? Foi o tédio, a raiva ou a pura vontade de desenhar demônios interiores?
Henry Jaepelt: BOM, de certo modo, “underground” AINDA é algo sussurrado pelos cantos ... tem tanta gente por aí que se diz undergound, mas age de uma maneira tão glamourosa e cheia de pose que destoa totalmente do sentido do termo. Sou até bem discreto, não fico na autopromoção – há quem diga que é um erro de marketing. Não sei.
O que leva a gente a rabiscar essas coisas? É uma necessidade que vai além das palavras.
Sua produção nos anos 80 e 90 teve um impacto tremendo na cena independente. Como era aquele cenário na prática? Havia um senso de comunidade ou era todo mundo gritando no vazio com uma Xerox na mão?
Do jeito como encaro, continuo trabalhando da mesma forma que nos anos 80 e 90. Talvez um pouco mais lentamente, com mais atividades disputando as mesmas horas do dia. Naquela época, era algo temperado com descoberta e encarando uma fortíssima resistência dos “donos” da bola, dos que queriam ditar certas regras e ficavam bastante putos com “aquele cara do interior que está em tudo que é zine e fica se metendo eu tudo que é lugar”. Hoje, há um pouco mais de desapontamento na mistura. Você vê tanto comportamento besta e egocêntrico... Mas como já acumulei uma certa bagagem no quesito não ser lembrado ou ter o trabalho sistematicamente apagado das menções por aí, continuo sendo a pedra no sapato. Meu trabalho influenciou muita gente – inclusive os que negam tal influência.
Essa comunidade positiva ainda existe, assim como a comunidade negativa.
Naquela época, até que nem tanto, mas atualmente, sim, há uma horda de egos inflados gritando com alguma coisa na mão... mas ninguém sabe o que é.
Não acredito que meu trabalho grite... apenas vai falando o que aquele momento colocou no papel.
O que significava ser “maldito” naquela época? Era um rótulo, um fardo ou uma espécie de coroa de espinhos que se usava com orgulho?
Sou maldito até hoje. Em qualquer época, ser “maldito” significa não seguir a manada. E a manada só enxerga a manada, só fala da manada.
Em 2013, a Ugra Press publicou Maldito Seja Henry Jaepelt, um resgate potente da tua obra. Como foi revisitar essas histórias? Você as encara hoje com o mesmo olhar de antes, ou sente que é outro Jaepelt que as observa agora?
São fases distintas e sempre é possível enxergar pontos “a melhorar”. Só alguém muito babaca não enxergaria seu trabalho ou a si próprio com uma alta dose de autocrítica. Todos nós temos limitações... Mas elas devem subir degraus junto com o nosso progresso. Só não enxergamos limitações quando o umbigo está tão inchado que impede a visão...
Caso fosse lançado um “volume 2” com materiais feitos DEPOIS desse primeiro, e você comparasse as duas edições, certamente veria que seriam coisas diferentes. Não seria “mais do mesmo”.
O que mudou e o que permaneceu igual no seu traço e no seu discurso desde aquelas primeiras HQs até hoje?
Algumas coisas permanecem... mas o principal é manter tudo em desenvolvimento. Não dá pra permanecer tosco a vida inteira, né? Sempre acreditei em APRENDER. A gente aprende a usar melhor os materiais, a ter mais paciência, a enxergar e tentar não repetir os mesmos erros. A essência, assim como a forma, é algo que a gente aprimora com o passar do tempo e com o que acumulamos nas nossas experiências.
O seu trabalho tem um quê de provocação silenciosa, uma inquietude gráfica. Você desenha para se libertar ou para aprisionar algo em papel?
Desenho o que acho que devo colocar ali para dizer o que pretendia dizer. Não é um método livre de falhas. É bem limitado, na verdade. Hahahahah. É algo que aprendi com diversos autores. Claro, às vezes é pedir demais que essas coisas sejam entendidas ou captadas. O imediatismo e o mastigadinho que exigem é algo que dá nos nervos. Pessoas com uma biblioteca um pouco mais volumosa, que não ficaram em coma nos últimos 50 anos (pelo menos) têm uma visão/compreensão um pouco melhor... aprenderam a interpretar textos, né?
A provocação, assim como a inquietação, são coisas que sempre estiveram presentes em maior ou menor grau nesse “incomodar”. Não é uma prisão, é um registro.
A internet mudou tudo, inclusive o circuito alternativo. Como você enxerga o papel das redes sociais para os quadrinistas independentes? Um novo terreno fértil ou uma armadilha disfarçada?
Trabalho no papel. Meus originais existem, podem ter uma dedicatória rabiscada neles, podem ser pendurados na parede, com todas as suas manchas e amarelados proporcionados pelo tempo. Meus zines são impressos, enviados pelo correio, de preferência com uma carta junto. Claro, os números já foram mais expressivos, mas sempre trabalhei assim.
Dessa forma, é possível ficar fora do controle dos algoritmos.
Pra quem quer se promover, ser o tal, o bom, o único, o maior umbigo de pedaço, acho que a internet é perfeita.
Uso a internet para me comunicar, pedir endereço para mandar envelopes, conversar com pessoas em vários cantos do mundo e tentar me divertir um pouco nessas conversas, aprender alguma coisa e tal. Em breve, penso em ter um poster de Sarah Connor aqui na parede... 😉
Seus gatos, personagens recorrentes nas redes, são parte do processo criativo? Ou são os verdadeiros editores da sua obra?
Os mestres passam o tempo todo dormindo. Eu apenas existo para ganhar dinheiro e poder comprar ração.
Se pudesse escolher um quadrinista (vivo ou morto, nacional ou gringo) para um projeto a quatro mãos, quem seria — e que história nasceria desse pacto?
Nunca pensei nisso.
Olhando para trás, para todos os fanzines, as entrevistas, as páginas rabiscadas de madrugada… o que você diria para o Henry do passado, aquele moleque de olhos brilhando com a primeira cópia do próprio zine?
“Obrigado”.
Tudo o que esse moleque fez, de um jeito ou de outro, me transformou nisso que sou. Pude aprender muita coisa ao longo da estrada. Os conselhos, se houvesse algum, seriam noutras áreas...
Por fim, como você gostaria de ser lembrado dentro da história dos quadrinhos brasileiros? Como o maldito, o visionário, o teimoso, ou tudo isso junto, impresso
Ninguém liga, essa é que é a verdade. Você pode fazer o melhor dos trabalhos, mas se não estiver enturmadinho na manada, esquece! Faço o que faço porque realmente GOSTO de fazer. Não cultivo esse tipo de ilusão. Reconhecimento zero, divulgação zero, resenhas zero. Logo, não tem como fazer para “aparecer”, para ver um comentário “X” ou “Y” onde quer que seja. Não é pra isso que faço o que faço.
Possivelmente, algum filho da puta interesseiro que nunca fez absolutamente NADA pelo meu trabalho, me sacaneou em tudo que pôde, poderia querer “resgatar” tudo e ganhar em cima.
Respeito já seria ótimo...
Henry Jaepelt nas redes sociais
Facebook: facebook.com/henry.jaepelt
Instagram: instagram.com/henryjaepelt/
Nota da redação: Esta entrevista foi realizada por e-mail. Todas as respostas foram publicadas na íntegra, preservando o conteúdo original enviado pelo entrevistado.