Existem cartunistas que desenham com o lápis. Fernando Gonsales desenha com bisturi. A cada tira do Níquel Náusea, ele disseca o comportamento humano com a precisão de um cirurgião cômico e faz isso colocando animais para falar. O rato filósofo, a barata existencialista, o cachorro cínico... todos encarnam o que há de mais esquisito, patético e genial em nós mesmos.
Nesta edição, a gente puxa uma cadeira e convida você pra esse café com Gonsales, uma conversa sobre humor, ciência, absurdos cotidianos, e a arte de rir do próprio fracasso (dos outros também, porque ninguém é de ferro).
Prepare seu café forte. O papo vai ser ácido. E irresistivelmente hilário.
Você começou sua carreira como veterinário e biólogo. Como essa formação influenciou seu trabalho nos quadrinhos?
Eu sempre desenhava e lia muito sobre animais antes de fazer faculdade. Então, o caminho já estava dado. Os cursos serviram para dar mais base para o meu trabalho. Às vezes o aprofundamento nos temas até atrapalhava um pouco, pois algumas histórias acabavam ficando “técnicas” demais.
Qual foi o momento decisivo que o levou a trocar o jaleco de laboratório pela prancheta e o humor gráfico?
Já trabalhava como veterinário, com animais silvestres, mas resolvi parar por um tempo para tentar a carreira de desenho. Por sorte, logo após essa minha decisão, surgiu o concurso da Folha de São Paulo e fui classificado como autor de tiras, já com o Níquel Náusea.
O que sua família achou dessa mudança de rumo? Houve resistência ou apoio?
Apoio total. Quando resolvi tentar a profissão de desenhista, parando um tempo com a carreira de veterinária, tive todo o suporte e incentivo. Foi tudo bem tranquilo.
Você lembra qual foi a primeira tira ou cartum que publicou profissionalmente? Onde saiu?
Antes de publicar na Folha fiz pouquíssimas coisas profissionalmente. Mas minha primeira publicação foi uma história de terror na revista Sobrenatural. Curioso que era sobre um fugitivo que entrou num esgoto cheio de ratos e encontrou o demônio por lá.
Como foi ver seu trabalho impresso pela primeira vez? Teve aquele “frio na barriga”?
Não estava muito consciente do que estava acontecendo. Não foi bem um frio na barriga, porque o trabalho de desenhista não tem essa coisa de ser “ao vivo”. Mas fiquei muito estranho percebendo o quanto meu trabalho era amador naquele momento. Tive que aprender rápido e os outros desenhistas da Folha me ajudaram muito nesse sentido.
Como surgiu a oportunidade de publicar Níquel Náusea na Folha de S.Paulo? Foi por concurso, certo?
Sim, em 1985. Nem me dei conta na época que estava publicando num veículo com tantos leitores. Felizmente não pensei muito nisso.
Nos anos 80, havia uma cena alternativa fervilhando. Você se via como parte desse movimento ou sempre caminhou por fora?
Como falei, estava meio inconsciente do que estava acontecendo e fui fazendo minhas tiras sem pensar muito, mais instintivamente. Hoje vejo que estava de certa forma integrado com o espírito daquela época. Mesmo fazendo quadrinhos que não falavam temas da sociedade, acabei fazendo uma coisa meio agressiva, mas nem de longe era essa a minha intenção. Eu estava muito mais para nerd do que para punk.
Qual foi a reação inicial do público, e dos editores, quando se depararam com um rato cínico, urbano e crítico como o Níquel?
No comecinho a reação dos editores foi boa, mas logo meu trabalho caiu de qualidade, muito por meu amadorismo. Então recebi algumas críticas dos editores, acho que bem pertinentes, mas eles me deram tempo suficiente para ir acertando o rumo. Por muitos meses abria o jornal achando que seria cortado da página, mas isso nunca aconteceu. Em relação ao público, o feedback não chegava a mim, exceto por raríssimas cartas ou contato direto com as pessoas. Que também era pouco. Não sabia qual estava sendo a resposta, acho que foi bom poder publicar sem tanta pressão.
Você enfrentou muitos “nãos” antes de emplacar? O mercado editorial da época aceitava bem seu tipo de humor mais ácido e reflexivo?
Não busquei muita coisa antes de publicar na Folha. Não tive muitos “nãos”, só alguns, mas todos que recusaram meu trabalho foram legais, não me desestimularam. Até pelo contrário, alguns editores me incentivaram bastante a procurar lugares mais adequados para meu estilo.
Em algum momento pensou em desistir da carreira de quadrinista? O que te manteve firme?
Como publicava na Folha diariamente, nem pensava em parar, e as coisas foram fluindo naturalmente. O que me fez pensar em parar de verdade foi uma dor nas costas muito forte que perdurou por muitos anos. Consegui administrar essa condição com algumas terapias corporais, tipo quiropraxia, RPG ou acupuntura. Depois descobri uma yoga tibetana incrível chamada Lu Jong. Com ela eu me acertei de vez, melhorei muito. Pratico até hoje todos os dias.
Níquel Náusea é uma paródia do Mickey Mouse. O que te inspirou a criar esse personagem especificamente?
Queria fazer um personagem animal, que convivesse com humanos, sem ser dependente deles. Um rato foi uma boa opção porque além de não precisar dos humanos para sobreviver, ainda era um problema para eles. O nome Níquel Náusea é só paródia na sonoridade do Mickey Mouse, não era exatamente um contraponto ao camundongo do Disney. Às vezes brincava um pouco com essa diferença entre o camundongo fofo e o rato nojento dos esgotos, mas isso nunca foi o foco principal.
Como você define o “humor Gonsales”? Há um manifesto secreto por trás das tiras?
Todo autor acaba passando seu jeito de ver o mundo em seu trabalho, mesmo de forma inconsciente. É difícil definir isso. Sempre quis despertar algum sentimento simpático à causa ecológica. Mas ao mesmo tempo achava que abordar diretamente o assunto ambientalista poderia deixar a tira muito séria ou panfletária, e tentei evitar isso. Talvez o meu “manifesto secreto” seja esse, fazer humor usando animais na esperança que isso ajude indiretamente na conscientização ecológica.
Como você equilibra o humor nonsense com a crítica social nas tiras? Esse tom surgiu naturalmente ou foi sendo moldado com o tempo?
Tudo vem com o tempo. No início eu era muito mais “biológico” que hoje. Mas, de qualquer forma, considero os humanos tão animais como os outros, então a mudança não foi tão drástica assim. Animais, incluindo os humanos, são meio nonsense mesmo.
Você já comentou que o processo criativo ainda é um mistério pra você. Pode nos contar mais sobre como nasce uma tira?
Para mim é sempre um processo ativo, quer dizer, muitíssimo raramente me aparece uma ideia sem que eu esteja ativamente buscando. Então eu tenho que me colocar num estado de espírito que me permita fazer essa busca. Tenho que estar suficientemente relaxado para que as ideias surjam, mas não pode ser relaxado demais para que o sono venha antes. Depois preciso de um foco, algum assunto que funcione como uma âncora. Se tudo correr bem, acabo tendo uma ideia de texto que anoto num papel. Gosto de ter várias ideias anotadas, um estoque mesmo, para nunca ter que procurar uma ideia com pressa, com hora de entrega me pressionando. Mas tudo isso que eu descrevi é só o jeitão da coisa. Entrar nesse estado de espírito criativo nunca teve uma fórmula eficaz que eu domine. Tem muitas vezes que, apesar de tudo estar ao meu favor, nada acontece. Ou ao contrário, entro no estado criativo rapidamente, sem saber exatamente como. Acredito que existam fatores externos que estão fora do meu controle, como momento da vida, experiências recentes ou até mesmo a fase da Lua.
As ideias surgem do cotidiano? Do noticiário? De conversas ou devaneios solitários?
Tudo isso. Mas eu tenho uma coisa de nunca pensar em tiras fora do meu tempo de trabalho. Se estou vendo um filme, tento apenas ver o filme. Se estou conversando, tento apenas conversar. Só depois, quando estiver buscando uma ideia, alguma coisa da minha vivência anterior certamente vai influenciar.
Você mantém uma rotina ou ritual criativo, como desenhar em horários específicos, caminhar antes de escrever, etc.?
Tenho uma rotina mais ou menos fixa em termos de horário de trabalho, no final da manhã e no final da tarde parece que sou mais produtivo, nem sempre. Gosto de trabalhar em blocos. Por exemplo: passo alguns dias apenas bolando as ideias das tiras, anotando sem me preocupar com o desenho. Depois passo alguns dias só desenhando a lápis as ideias arquivadas, e então faço a arte final de várias tiras de uma vez. Gosto desse sistema porque “aqueço” em alguma tarefa específica e é mais fácil pegar algum embalo. E para manter a saúde da minha coluna e mente, também reservo um horário para o Lu Jong (yoga tibetana) todos os dias.
Muitos leitores falam com saudade das coletâneas antigas de Níquel Náusea. Como foi o processo de lançar essas edições nos anos 90 e 2000?
Nos anos 1990 houve um boom de quadrinhos nas bancas, liderado pelo Angeli e a editora Circo. Nessa época muitas publicações foram lançadas e eu peguei essa carona com o gibi Níquel Náusea, que tinha o Spacca e o Newton Foot como colaboradores fixos, além de outros bem legais. Com o tempo e graças ao plano Collor isso acabou, e então a maioria dos autores passou a publicar coletâneas em livros. Foi um tempo legal, essa coisa de fazer revistas era bem estimulante, mas na real, nunca foi um bom negócio para mim. A coisa andava mais por gosto do que por grana, inclusive para os colaboradores.
Você participava da curadoria das tiras escolhidas? Havia um tema ou critério na seleção?
Eu cuidava da edição das tiras cem por cento. O critério era subjetivo, colocava as que eu achava melhores, em ordem cronológica.
Há planos para relançar essas coletâneas esgotadas ou talvez reunir todo o material em uma edição definitiva?
Há planos de novas coletâneas, mas não para uma edição definitiva com todo material. Daria um livrão, que acho meio ruim de manusear. E tem muita coisa que acho que nem vale a pena republicar.
Você sente que parte importante do seu trabalho se perdeu por estar fora de catálogo?
Tenho a sorte de publicar constantemente as tiras em livros didáticos, então meu material está sempre voltando à tona dessa maneira. No meu site e agora nas redes sociais, tenho a chance de mostrar de novo alguma coisa antiga. Tem umas HQs maiores que fiz na época dos gibis que gostaria de publicar de novo, mas no geral está tudo por aí.
Já pensou em lançar uma edição do autor, com comentários seus sobre as tiras, bastidores e reflexões?
É uma ideia. Como estou fazendo 40 anos de carreira, talvez um livro comemorativo faça sentido.
Alguma história ou publicação sua que você considera injustamente esquecida e gostaria que o público redescobrisse?
Fiz um álbum com uma coletânea de histórias do Vostradeis, um mago medieval, que tinham sido publicadas no tempo que fazia o gibi. Desse tempo sobraram algumas outras histórias que gostaria de republicar.
Já enfrentou censura editorial? Algum editor pediu para suavizar o conteúdo, e mesmo assim você insistiu e publicou?
Muito raramente. Na Folha sempre tive liberdade total. Nos gibis também. Acontece que minha abordagem já é meio tranquila, então isso não foi problema para mim.
Suas tiras abordam religião de forma provocativa e bem-humorada. Como lida com críticas ou reações mais conservadoras?
Não tenho tido muitas reações negativas com essas tiras. Acho que apesar de ser crítico a muitas posturas religiosas, não costumo ser desrespeitoso. Por exemplo, brincar com a Arca de Noé, Adão e Eva ou mesmo com Deus criando o mundo em sete dias não causa problema para quem lê a Bíblia de forma não literal. Mas para um fundamentalista, que considera tudo que está escrito nesse livro como verdade incontestável, qualquer tipo de abordagem será ruim. Nesse caso não tem jeito mesmo, as criticas serão inevitáveis.
Você foi criado em uma família católica. Como isso moldou, ou motivou o tipo de humor que você faz hoje?
As explicações do catolicismo nunca me satisfizeram completamente, achava estranho o conceito de um Deus criando tudo e desde criança me perguntava quem criou Deus. Talvez esses questionamentos tenham deixado minha mente mais crítica. A separação entre sujeito e objeto, criador e criatura, só faz sentido dentro da mente humana. Para mim, a verdade absoluta está fora da compreensão humana.
Acredita que o humor tem poder de abrir brechas em temas considerados “intocáveis”?
Acho que se houver respeito numa conversa, nenhum assunto é “intocável”. O humor pode ajudar a abordagem de temas mais difíceis sim, desde que a outra parte tenha senso de humor, o que nem sempre acontece. Algumas vezes a ironia nem é entendida como ironia, e é interpretada de forma literal. Mas isso faz parte do processo, o desafio é deixar isso claro sem ser explícito. Mas essa fronteira pode ser bem estreita algumas vezes.
Quais artistas ou quadrinistas foram referência para você no início? E hoje, quem você admira?
No início, Quino, da Mafalda, Carl Barks das hqs do Tio Patinhas, Uderzo e Gosciny do Asterix, Morris do Lucky Luke, Al Jaffee e outros da Revista Mad, Dick Browne do Hagar, Rog Bollen de Os bichos, Renato Canini das hqs do Zé Carioca.
Hoje eu confesso que sou bem desatento ao cenário de quadrinhos. Leio algumas coisas que gosto muito, mas acabo não acompanhando tudo que os autores fazem.
Você acompanha o trabalho de novos cartunistas ou quadrinistas brasileiros? Há alguém que te surpreendeu recentemente?
Como disse, sou meio relapso em acompanhar quadrinhos de uma maneira geral. Agora que estou no Instagram tenho tido mais contato com os novos artistas brasileiros. Acho que Will, da Dona Anésia, tem um trabalho bem consistente. Tem muitos outros, o quadrinho está mudando, com o tempo vou aprender mais sobre o que está acontecendo...
O humor gráfico brasileiro mudou? Se sim, mudou pra melhor ou pra mais “cauteloso”?
O humor gráfico mudou na medida em que o mundo mudou também. Entendo que você usou o termo cauteloso para se referir às preocupações com o politicamente correto. Sim, isso está mais presente, mas acho que essa é uma preocupação de sempre, depende do autor. Hoje todo mundo tem voz nas redes sociais e o efeito disso é que as reações são mais numerosas e mais instantâneas. Hoje os autores estão mais submetidos ao julgamento geral. Isso pode ser um inibidor da criatividade, mas essa validação da sociedade sempre existiu de outras formas e não é necessariamente uma coisa ruim. É apenas inevitável. Cabe a cada autor decidir como vai navegar nesse mundo.
Você já foi premiado várias vezes com o Troféu HQ Mix. Como encara esse reconhecimento da cena de quadrinhos?
Estava falando de validação da sociedade. Ganhar prêmios é bom, mas também pode atrapalhar a criatividade no sentido de você querer continuar fazendo o que agradou. Tem também autores fabulosos que nunca são reconhecidos, por diversos motivos. Então ganhar prêmios é uma coisa ótima, mas sem deslumbramentos.
Que tipo de legado você gostaria de deixar para as futuras gerações de cartunistas?
Legado é uma palavra forte. Se alguns cartunistas lerem o que fiz e de certa forma gostarem, está ótimo.
Se o Níquel pudesse escrever seu próprio epitáfio, o que ele diria?
Sobrevivi à humanidade até o dia da minha morte.
Quais são seus planos atuais e futuros? Há novos projetos em andamento?
Hoje, manter minha produção semanal de tiras, já é o meu desafio. Planos mirabolantes, no momento não os há.
Já pensou em explorar outros formatos, como animação, graphic novel, livro infantil ou até roteiro para audiovisual?
Já até fiz algumas coisas diferentes, mas acabei me tornando um especialista em tiras em quadrinhos. Admiro muito quem navega em vários formatos, mas acho que no final das contas não sou essa pessoa. Acho possível explorar várias possibilidades sem mudar de formato e talvez seja essa a minha desculpa básica para não tentar muito outras coisas.
Se tivesse carta branca para criar qualquer projeto sem limites editoriais ou orçamentários, o que faria?
Acho que voltaria a fazer algumas histórias um pouco mais longas, como as que eu fazia nos gibis. Não graphic novels, mas algo menor, mais parecido com contos.
Fernando Gonsales nas redes sociais
Instagram: instagram.com/niquel.nausea/
Nota da redação: Esta entrevista foi realizada por e-mail. Todas as respostas foram publicadas na íntegra, preservando o conteúdo original enviado pelo entrevistado.
Devia existir um livro, com todas as entrevistas de quadrinista que temos por aqui, afim de preservar essas conversas para todas as gerações. Seria algo que eu teria na minha coleção ❤️❤️❤️❤️❤️❣️❣️❣️❣️